sábado, 24 de março de 2012

Dessemelhanças entre o Cinema Novo[1] & o NOVOCINEMANOVO

Tau TOURINHO
Lucas VIRGOLINO
Gabriel LOPES PONTES




[1] Estamos plenamente cientes de que o Cinema Novo é um movimento desencadeado & conduzido por outros cineastas além de Glauber, aos quais também muito admiramos. Mas Glauber de tal forma se confunde com o movimento Cinema Novo e o personifica que, neste artigo, ater-nos-emos a ele & à sua obra.


Roque Araújo ( empunhando a câmera, na foto maior, e no detalhe), íntimo colaborador de Glauber & padrinho do NOVOCINEMANOVO, conduz as filmagens da cena da escadaria de “Incarcânu A Tiortina”.
 Qualquer semelhança com o Potekym einseinstaniano é mera coincidência. Fotos de Lucas Virgolino


Que Glauber é a régua & o compasso do NOVOCINEMANOVO não escondemos de ninguém, não queremos esconder nem poderíamos, tão óbvia & gritante é a sua influência sobre nós.

Independente disto, somos independentes.

Há quem diga que queremos “Continuar onde Glauber parou”, mas não é bem por aí. Pra começar, porque um artista da envergadura do senhor Glauber Pedro de Andrade Rocha não tem começo nem fim. Décadas depois da sua morte, sua obra continua vívida, se fazendo e se refazendo perpetuamente a si mesma & prescindindo totalmente de três lexeus como nós. O que queremos, na verdade, é cultuar sua proposta & – se é que isto é possível – radicalizar ainda mais alguns dos seus aspectos, como a espontaneidade & o improviso. Neste processo, dessemelhanças entre o trabalho do Mestre & dos discípulos são inevitáveis, &, no nosso entender, saudáveis.

Por exemplo, não resta dúvida que, por mais fragmentada & desconexa que sua narrativa pareça ser – & não é – o Cinema de Glauber conta uma estória. Mesmo em uma obra tão complexa & inovadora em termos narrativos como A Idade da Terra, uma estória é, no mínimo, dedutível. Nós vamos de encontro a esta necessidade do Cinema contar uma estória. Na Verdade, nosso lema é: “Quem disse que o cinema tem que contar uma estória?”

Outro ponto em que diferimos radicalmente do gênio de Conquista é no emprego do ator. Glauber usava atores. Podia até se permitir lançar mão do que Rosellini definia como “não-ator”, ou seja, o amador ou mesmo o leigo improvisado como ator. Mas, majoritariamente, empregava atores profissionais & da mais alta categoria. A gente usa ator. Só que ATOR REAL, que, tal como definido em artigos anteriores[1], é o cidadão que interpreta a si mesmo, que depõe interpretando & interpreta depondo. E o fato da gente só usar ator real caracteriza nossos filmes como documentários. Mas, num paradoxo que a gente considera muito agradável, o fato de que usemos atores, ainda que apenas atores reais, TAMBÉM caracteriza nossos filmes como ficcionais. He, He, He... O NOVOCINEMANOVO não é só um hibridismo documentário-ficção, é uma contradição documentário-ficção. Tudo isto apimentado com humor.

Pois bem, não é apenas na modalidade de ator com que trabalhamos que diferimos de Glauber, mas também & sobretudo na maneira de trabalhar o ator. Glauber, como salienta seu bem próximo colaborador Hugo Carvana, tinha um método próprio de direção de ator. Um método particularíssimo, originalíssimo & indiscutivelmente eficaz. Inicialmente atraído pelo Teatro & profundo conhecedor desta Arte, poderia usar o método de Brecht ou o de Stanislavsky, mas não usava nenhum dos dois, baseava-se em ambos &, no final de contas, era ele mesmo. Queria que seus atores fossem “glauberianos”, acreditava que só era possível conseguir isto deles se estivessem num estado de máxima tensão emocional e não media esforços para conduzi-los a este estado, tratando-os ora com abraços(literalmente), ora com tabefes(idem). Nós não usamos método algum. Método destruiria a espontaneidade que preconizamos. Nosso método é a ausência total de método. Ademais, ator é uma raça complicada mesmo, que parece existir só pra contestar outra raça igualmente complicada, que é a dos diretores, surgindo daí uma querela inevitável, entre nós & eles, que o mais sábio é evitar. A gente manda o desinfeliz cruzar a ponte do rio Kway & ele se joga dela; manda simular agonia & ele entra em êxtase; pede gritos & só ouve sussurros. Melhor não perder tempo & deixar o elenco a la vonté diante da câmera. Glauber não dizia que ator não tem PORQUE saber o que vai fazer, tem só que fazer? Pois bem, a gente acha que o ator sequer tem que saber O QUÊ vai fazer. Ou seja: nós radicalizamos a iniciativa de Glauber de desenvolver uma maneira própria de dirigir o ator, simplesmente suprimindo qualquer esforço neste sentido.

No tocante à tendência, Glauber mesclava o cinema industrial hollywoodiano com o cinema de propaganda Soviético com o cinema intelectual europeu. Nós não mesclamos tendências. Nós somos nossa própria tendência.

Em termos de proposta, acreditamos que Pasolini acertou na mosca quando caracterizou o que Glauber produzia como cinema-poesia. Já nós buscamos um cinema-plástico-musical. Neste sentido, improvisamos livremente sobre um tema. Ora, bolas, ninguém vai ser maluco de dizer que Glauber não improvisava, bastando, para confirmar isto, o célebre episódio da cena final de Câncer, em que Carvana deveria matar Pitanga, mas este interpretava tão bem que, em pleno andamento das filmagens, Glauber permitiu a inversão dos papéis e acabou concordando que Pitanga matasse Carvana, sem reclamações (Gomes: 1997, 468). Isto não aconteceria conosco porque, ao começarmos uma cena, não saberíamos que alguém ia matar alguém e muito menos quem ia matar quem. E enquanto Glauber curtia mesmo era Villa-Lobos & Carlos Gomes, nós temos o Free Jazz de Ornette Coleman como inspiração & queremos encontrar uma sua tradução cinematográfica. Enquanto vamos tentando, nos divertimos adoidado.

Mas talvez o ponto em que mais nos afastemos de Glauber seja a postura diante da técnica e do equipamento. Glauber se preocupava com a técnica – e muito. Sua aparente despreocupação com a técnica derivava, paradoxalmente, de uma preocupação preciosista com a técnica. Por isto, se empenhava em obter & usar o melhor equipamento disponível no mercado. As circunstâncias em que adquiriu suas duas primeiras câmeras são significativamente ilustrativas desta preocupação. A primeira, uma Arriflex 35 mm, foi comprada com a venda de três vacas com que o avô o presenteara, possivelmente imaginando que ele fosse usá-las como matrizes de uma manada[2]. Depois, estando no Rio, pediu à mãe que lhe enviasse grana pra comprar um automóvel. Desembarcou na Bahia com um caixa sem tamanho, dizendo a todos que continha o famoso carro, desmontado. O “carro”, na verdade, era outra câmera, mais nova & sofisticada que a anterior. E assim seria ao longo de sua brilhante careira. 

Não queremos dizer que Glauber estivesse errado – livra! – mas achamos que há múltiplos caminhos na Arte &, como o dele não é necessariamente o único, insistimos que, tanto em termos de técnica quanto de equipamento, quanto pior, melhor. Isto não é mera displicência. É a culminância da nossa ênfase no humano. Já dissemos antes, repetimos & repetiremos sempre: Cinema não é equipamento. Cinema é inteligência. Cinema não é feito por máquinas, mas pelos homens que as empregam. O NCN se propõe a fazer ARTE com os recursos, o orçamento & o equipamento que uma família empregaria para registrar seu churrasco de fim-de-semana.

Em suma: ao contrário do nosso ídolo, NÃO nos preocupamos em contar uma estória; NÃO tentamos criar um método próprio de direção de ator; NÃO seguimos escolas nem mesclamos tendências; NÃO damos a menor pra técnica e pior ainda pro equipamento. Somos o cinema do NÃO.

Mais que independente & alternativo, o NCN é REBELDE!!!

Esperemos que Glauber, de onde estiver, concorde com outro saudoso mestre, Ivo Vellame[3], quando este afirma que Haverá sempre crédito para os que se desnudam pela Arte[4], e, isto posto, seja condescendente conosco & nos mande suas bênçãos.






[1] Vide “Manifesto do NOVOCINEMANOVO” & “Como Fazer NOVOCINEMANOVO”, ambos publicados no n° 11 da revista Cinema Caipira, fev. de 2010, & “Os Zumbis de Maria Mandu, a construção de um NOVOFILMENOVO nas serras de Alagoas”, publicado no nº 12, março de 2010.


[2] Essa estória de vaca nos remete ao tema de um documentário que está em nossos planos filmar, “Betão & Mimosa Love Story”, sobre um míope de Entre-Rios que arriou os quatro pneus por uma vaca, &, a se dar crédito à lenda, surgiu desta união aberrante um saltitante minotauro... Enfim, não vamos cantar a pedra, ou melhor, a vaca.
[3] Historiador & crítico da Arte. Um dos maiores & mais queridos professores da quase sesquicinquentenária história da Escola de Belas-Artes da UFBA.
[4] Catálogo-convite da exposição coletiva Primeiro Tempo, novembro de 1985, Galeria Cañizares, Salvador / BA.

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