sábado, 24 de março de 2012

MAIS UM ARTIGO DO NOVOCINEMANOVO


Lições de Marker, Forgács & Peixoto para o NOVOCINEMANOVO

Tau Tourinho

Lucas Virgolino

Gabriel Lopes Pontes



Acreditamos piamente que, para se criar algo de novo em termos de Cinema, a primeira atitude é observar o velho Cinema. Isto não só porque não há mesmo nada de novo sob o sol, como porque a mais rápida olhada sobre a História da Arte, no nosso caso específico, sobre a História do Cinema, revela que não há proposta estética que tenha nascido da coxa de Júpiter. Tudo é recriação, reinterpretação, releitura de alguma coisa – normalmente de algumas coisas – feita ou feitas antes.



A partir do momento que aceitamos esta premissa numa boa, temos como parte importante da nossa luta pela construção de um NOVOCINEMANOVO, a observação sistemática da obra de cineastas importantes, que, assim como nós, nadam fora do mainstream, & que são precedentes de peso do nosso trabalho. Com eles, buscamos aprender.



Nessa busca, encontramos o francês Chris Marker. Com seu La Jetée, que ele realiza só com imagens estáticas (aliás, de uma qualidade belíssima, num P&B que lembra Henri Cartier-Breson), ele nos mostra que é perfeitamente possível fazer Cinema, a Arte das imagens em movimento, exclusivamente com imagens que não se movimentam.



O filme é um pouco science fiction, um pouco realismo fantástico. Um garoto parisiense é levado pelos pais ao aeroporto de Orly, onde vê um homem morrer. Sobrevém uma guerra atômica, a humanidade é dizimada, os remanescentes se refugiam nos subterrâneos, onde concluem que a única possibilidade de um futuro está no passado &, neste sentido, encontram meios de enviar um deles, justamente o garoto que viu o homem morrer, já crescido, em viagens ao tempo anterior à guerra. O personagem lembra o famoso Valerian, agente espaço-temporal das histórias-em-quadrinhos, ficando mesmo difícil precisar qual dos dois é produto de influência do outro. Depois do cara ter se apaixonado por uma mulher do passado, é mandado pro futuro, depois de volta ao passado, até morrer no aeroporto de Orly. Ou seja, o cara que o menino viu morrer era ele mesmo, com a estória se fechando num círculo. Mais do que esse enredo, no entanto, o que interessa para o nosso projeto de construção de um NOVOCINEMANOVO, é o conjunto de procedimentos estéticos que Marker adota, que, relidos & reinterpretados pela nossa ótica, podem ser assimilados pela nossa proposta estética.



Ele define La Jetée como Foto-Romance, não como filme, & é bem verdade que é mais o caminho das fotonovelas que ele trilha. Bem, se ele tem o direito de encarar um filme seu nesses termos, ninguém pode nos impedir de entender nossos filmes mais como Poesias Visuais do que como filmes propriamente ditos, o que defendemos numa teleaula que demos para a UFMG. No seu processo de criação, ele, Marker, como bem ressalta o professor  Da UERJ, Erick Felinto, nos extras do DVD, mescla Realidade & Poesia, Cinema & Literatura, criando um Cinema Aberto, convidando o expectador a dar sua contribuição ao fluxo de imagens que ele assiste. Eis aí um belo exemplo a seguir na nossa feitura de documentários, embora o filme em questão seja ficcional. Se trata de não dar o prato feito, mas, ao contrário, de abrir espaço pro expectador contribuir. Um pouco como o guitarrista Jim Hall, o rei das pausas, fazia, sempre deixando algum silêncio em sua música pra que o ouvinte entrasse. A ação correspondente, no caso de um documentário, seria não dar a informação completa, pronta, inquestionável. Já tem gente demais fazendo isto, ficou chato. Cumpre ressaltar que, embora Marker trabalhe com Imagens Estáticas & não com Imagens Animadas, ele dirige muito bem seu elenco, que, por seu turno, interpreta muito bem.



Embora esse filme de Marker seja bem legal, seu outro trabalho, Sem Sol, é simplesmente insuportável, uma verdadeira pérola de pernosticismo gaulês. Nem por isto deixa de nos ser útil. Ele monta, no que poderíamos chamar de um caos ordenado, que não deixa de lembrar nosso conceito de puzzle desconexo, imagens semi-domésticas capturadas, a maioria quase certamente em Super-8, no Japão, em Cabo Verde & na Guiné-Bissau.



Isto é bom pra gente! É um precedente importante, que referenda nossa tese de que o importante não são as imagens em si, mas o tratamento a elas dispensado. É a colocação em prática, décadas antes que sequer sonhássemos fazer Cinema, do nosso pressuposto de que as imagens não precisam ser (na verdade, não tem porque ser) perfeitas, dentro de um padrão técnico hollywoodiano, ou mesmo estritamente nítidas, para serem belas & expressivas. Ou seja, é tempo de nos livrarmos da paranóia do foco. Imagens sem excelência técnica também podem ser um ingrediente da nossa receita para um NOVOCINEMANOVO.



Interessante também é que, neste filme, Marker não usa uma narração propriamente dita, mas a leitura de cartas hipotéticas, escritas por um fulano hipotético a um sicrano hipotético & lidas por uma mulher com uma belíssima voz. O resultado é terrível, o texto das tais cartas é pretensão pura, um papo pseudo-intelectual de primeira grandeza, um olhar do Ocidente sobre outras culturas que supostamente seria um olhar filosófico, mas que soa mais como chauvinismo. Lógico que o leitor já deve estar se perguntando como este procedimento de Marker poderia nos ser de alguma valia na criação de um NOVOCINEMANOVO se o texto é tão chato. É que o texto é chato, mas a idéia é boa. Podemos roubá-la e usá-la melhor do que ele usou. Se a leitura de cartas pode compor a contraparte literária de um filme, podemos perfeitamente fazer o mesmo com Boa Terra Santa[1], utilizando os poemas de Sílvio Roberto. Depois, por muito que este seu documentário, na nossa visão, peque pelo exagero ao tentar ser poético-filosófico, não tenta contar uma estória, &, ao fazê-lo, comprova a nossa tese de que, embora seja excelente meio pra isso, o Cinema não tem necessariamente que contar uma estória.



Outro exemplo retumbante é do húngaro Peter Forgács, que, ordenando poeticamente imagens domésticas feitas por terceiros há muito tempo, tanto em O Danúbio como em O Cão Negro, comprova na prática mais outro ponto que temos defendido na teoria. Que não importam nem a procedência nem a qualidade das imagens. Importa o tratamento poético a elas dispensado.



Ao fim & ao cabo, & não interessando muito se o resultado estético que eles obtêm com seus filmes é bom ou ruim, o fato é que ambos se lançam à confecção de filmes etno-antropológicos com uma abordagem poética, iniciativa que, por mais que falhe no caso específico de Sem Sol, certamente consiste num precioso precedente para o nosso presentemente em construção Boa Terra Santa.



Muito bom também, muito útil para nós, é que tanto Marker quanto Forgács nos mostram que o áudio é perfeitamente dispensável, podendo ser substituído por legendas, cartões de texto à moda do Cinema Mudo ou narrações incidentais. Ora, com um antecedente tão relevante quanto este, passa a não ter nenhuma importância se os depoentes dos nossos documentários falam baixo, devagar, pra dentro, com má dicção. Passa a não ter nenhuma importância se o áudio tá mal captado. Ao inferno com o áudio! Há mil procedimentos estéticos válidos (& belos!) que dispensam ou substituem o áudio. Nós não fazemos Cinema espetáculo, Cinema comercial, Cinema de bilheteria. Fazemos um Cinema de Investigação Estética, não somos meros telejornalistas, como acabam sendo muitos colegas nossos, que nos perdoem a sinceridade. Assim como Cris Marker & Peter Forgatzs, devemos fugir dessas baboseirinhas de fórmula pronta que se vê por aí, nos basear neles & em muito outros para encontrar & trilhar um caminho original & pessoal.



Portanto, a partir da observação do trabalho desses dois caras, fica cada vez mais claro como devemos compor Boa Terra Santa, &, mais importante ainda, como podemos fazê-lo com as imagens & os sons de que já dispomos plus a música de OSCARAVELHO & a poesia de Sílvio.



Mas não só da observação do trabalho deles, como também da observação do trabalho de Mário Peixoto, que, com seu magnífico Limite, nos deu ótimos exemplos a seguir na construção de um NOVOCINEMANOVO, no geral, & na composição de Boa Terra Santa, no específico.



O principal – & mais radical – procedimento que seu trabalho, bem como outros clássicos do Cinema Mudo, nos sugere adotar, é o do recuo no tempo, o de uma viagem retrospectiva na História do Cinema, o de uma busca por inspiração mais no Cinema Primordial do que no Cinema Contemporâneo. Ou seja, radicalizar nosso procedimento de pesquisar & analisar o cinema que foi feito antes de nós, até mesmo muito antes de nós, deixando-nos influenciar ainda mais pelos mestres do passado do que pelos mestres do presente. Num aparente paradoxo, isto não só não significaria que estamos desalinhados com a contemporaneidade como, ao contrário, provaria que estamos alinhados com ela, pois a releitura de obras célebres é um dos procedimentos artísticos típicos da pós-modernidade. O fato é que, para os nossos objetivos de construção de um NOVOCINEMANOVO, parece mesmo haver mais lições no Cinema Primordial que no Cinema Contemporâneo. Ou, pelo menos, lições mais interessantes.



Por exemplo, O Homem da Câmera, de Dziga Vertóv, é um documentário, só que um documentário surrealista. Um belo caminho a seguir, dentre muitos que o Cinema Primordial aponta.

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Voltando a Peixoto, as lições que ele nos dá poderiam ser resumidas em dezenove pontos.



1] Repetir diversos tipos” de um mesmo objeto. Exemplo diversas cruzes, diversas menorot, kippot, mezuzot. 2] Despriorizar ritmo em função de atmosfera. A ênfase dispensada por Peixoto a Limite é menos ao ritmo que a atmosfera. É uma opção audaciosa, que, no caso dele, funciona muito bem. Se soubermos trabalhar, talvez funcione conosco também. 3] Tirar partido do brilhante emprego que Peixoto faz da perspectiva; jogar, como ele joga, o ponto-de-fuga nos lugares mais inusitados; empregar o fantástico micro-micro plano-de-detalhe que ele criou. 4] Buscar a poética que Peixoto encontra nos objetos inanimados, nos espaços vazios, quer rurais, quer infinitos.  5] A câmera de Peixoto avança & recua sobre o tema, avança & recua, enfoca outro tema, avança & recua sobre o anterior... Eis aí uma das mais belas lições a ser tirada de Limite!Ao filmar, devemos trabalhar os pontos-de-fuga de forma inusitada, trabalhar a relação da personagem com o ambiente, abusar da perspectiva & inovar. 6] Variar câmeras altíssimas com baixíssimas. 7] Peixoto demonstra que angulações inusitadas casam bem com composições assimétricas. Tratemos de promover esse casamento. 8] Empregar, como ele emprega, o espaço vazio como recurso poético-composicional. 9] Perseguir a plasticidade onipresente, que ele encontra & revela tanto ao enquadrar um pequeno objeto em plano-de-detalhe & micro-micro plano-de-detalhe quanto ao direcionar sua câmera para a paisagem & revelar a beleza plástica das rochas, da água, das pedras, das plantas, do céu. Em síntese, Peixoto acha Poesia Imagética [E isto é o que devemos procurar criar com nosso Cinema, Poesia Imagética!] tanto nos grandes espaços quanto nos pequenos detalhes. A plasticidade que ele encontra em algo tão pequeno & corriqueiro como pegadas na areia é impressionante, um exemplo que temos verdadeiramente que seguir. Extrair, enfim, do mínimo de informações, o máximo de plasticidade, como Peixoto faz ao enquadrar a silhueta da grama recortada contra o céu. 10] Suscitar determinadas sensações pela sucessão das imagens certas. Limite é pura sensibilidade poética na captação, ordenação & interpretação das imagens. 10-A] Peixoto demonstra que palavras não são indispensáveis para transmitir uma atmosfera, pois esta pode ser transmitida apenas pela combinação de imagens com sons & olhe lá sons!. (Bem, este não é necessariamente um exemplo a seguir, mas algo em que se pensar.) 11] Peixoto emoldura a figura pelo nada, recorta-a pelo espaço vazio. (Também não é necessariamente um exemplo a seguir, mas uma carta a manter na manga.) 12] Compor nossas cenas num esquema geométrico harmônico, como Peixoto faz o tempo todo. 13] Ao inferno com o foco! Peixoto demonstra que não devemos ser tão paranóicos quanto ao foco, que não há necessidade de tantas preocupações com uma fotografia nítida. Uma fotografia tem que ser BELA.14] Enquadrar, como Peixoto faz, uma mesma ação de um mesmo personagem, por diversos ângulos, pois este procedimento pode elevar à máxima potencia a plasticidade, a dramaticidade, a expressividade intrínsecas a qualquer cena.15] Criar uma composição plástica jogando, subitamente, sobre uma paisagem que, de per si já era plástica, um personagem que só a torna mais plástica.16] Fazer o inusual ou transformar o erro em acerto. Peixoto já usava câmera com Parkinson. O lance é que a usa conscientemente. Pra ele, a câmera com Parkinson não é um erro. Ou, se é erro, ele soube transforma-la em acerto. 17] Voltar obsessivamente a uma imagem, como Peixoto faz com uma árvore, é um poderoso recurso para revelar a dramaticidade, a plasticidade, a expressividade intrínsecas a qualquer objeto, personagem ou cena. 18] Usar imagens sem sentido numa narrativa, numa aparente gratuidade, enfatizando seu aspecto plástico é um procedimento perfeitamente coerente com nossa premissa de que Cinema não é necessariamente ação, Cinema é, antes de tudo, plasticidade. 19] Ele abre & fecha o filme com a mesma imagem. Este também é não é necessariamente um exemplo a seguir, mas não deixa de ser um dado fantástico.



No final das contas, o que ele parece ensinar ao NOVOCINEMANOVO, é que há maneiras de capturar imagens que facilitam tratá-las, posteriormente, de maneira expressiva, intensa, dramática, poética, PLÁSTICA.



Nos dá uma grande lição ao compor, com Limite, uma arrebatadora & instigante peça de poesia visual. É como se, muito antes de nós, & apesar de contar uma estória, Peixoto lançasse aquele nosso questionamento sobre a obrigatoriedade do cinema contar uma estória. Limite é mesmo o antecedente brilhante & inquestionável da nossa premissa de que o Cinema é, antes de tudo, uma experiência plástica. Ele abre um antecedente, demonstra a viabilidade da criação de um Cinema Poesia Visual, que é o que perseguimos. Devemos aproveitar o espaço que ele nos abriu.



Além disto, da obra de Peixoto se depreendem as seguintes cinco verdades.



1] O tédio, a melancolia, a solidão, o abandono também são estados de espírito a serem explorados, podem ser elementos plástico-poéticos, desde que plástico-poeticamente tratados. 2] Os meios técnicos não são limitados. Melhor dizendo, ele comprova aquilo que vimos defendendo há tempos, que não há meio técnico limitado. É tudo uma questão de empregar os meios disponíveis. Eis aí um ponto central da nossa busca por um NOVOCINEMANOVO, reduzir os meios ao mínimo & deles tirar o máximo! Os meios de que ele dispunha já eram suficientes para que ele os explorasse expressivamente. Como já dissemos em várias oportunidades... OS RECURSOS NECESSÁRIOS SÃO OS RECURSOS NECESSÁRIOS PARA SE EXPRESSAR O QUE SE QUER. 3] O tempo é uma criação, não existe tempo algum. Este é um dado fantástico, mas se atém especificamente a Limite, não é necessariamente um exemplo a seguir. 4] Cinema não é verdade, Cinema é imaginação, & imaginação vem de imagem. Contar estória é função de ficcionista, contar História é função de historiador. O cineasta, mesmo um cineasta documentarista & ainda que abordando um tema histórico, tem a função de contar uma estória apenas como uma tarefa subliminar; sua tarefa primordial deve ser criar beleza visual. 5] Limite é quase tão surrealista quanto Um Cão Andaluz, só que mais lento. Há uma qualidade plástica inegável em ambos os filmes & a plasticidade é prioritária.



Só nos resta agradecer & merecer os ensinamentos de Marker, Forgács & Peixoto & continuar na luta pela construção de um NOVOCINEMANOVO.





[1] Nosso novo documentário, sobre a presença judaica na Bahia, realizado com o apoio da Fundação Gregório de Mattos e da DIMAS e o suporte da Sociedade Israelita da Bahia, com lançamento previsto para 15 de outubro de 2011.

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